quarta-feira, 11 de março de 2009

Uma migalha da graça de "O Carteiro de Pablo Neruda"



Este é um daqueles livros que se lê de um fôlego só e com um imenso prazer. Surpreende-nos logo no prólogo, do qual não resisto em transcrever alguns excertos. Se gostarem, óptimo. Se não gostarem, fica pra mim! ;)


"Na altura eu trabalhava como redactor cultural de um diário de quinta categoria. A secção a meu cargo guiava-se pela concepção de arte do director que, orgulhoso das suas amizades no ambiente, me obrigava a incorrer nos crimes de entrevistas a vedetas de companhias frívolas, resenhas de livros escritos por ex-detectives, notas a circos ambulantes ou louvores desmedidos ao hit da semana que pudesse engenhar o filho de qualquer vizinho.

Outros escritores da minha idade obtinham considerável sucesso no país e até prémios no estrangeiro: o da Casa das Américas, o da Biblioteca Breve Seix-Barral, o da Sudamericana e Primera Plana. Nos gabinetes húmidos dessa redacção agonizavam todas as noites as minhas ilusões de ser escritor. Ficava até de madrugada a começar novos romances que deixava a meio do caminho desiludido com o meu talento e a minha preguiça.A inveja, mais que um incentivo para acabar alguma vez uma obra, funcionava em mim como um duche frio.

Pelos dias em que cronologicamente começo esta história — que tal como os hipotéticos leitores notarão arranca entusiasta e termina sob o efeito de uma profunda depressão — o director reparou que a minha passagem pela boémia tinha aperfeiçoado perigosamente a minha palidez e decidiu encomendar-me um serviço à beira-mar, que me consentisse uma semana de sol, vento salino, marisco e peixe fresco, e de caminho importantes contactos para o meu futuro. Tratava-se de assaltar a paz marítima do poeta Pablo Neruda, e através de encontros com ele, conseguir para os depravados leitores do nosso pasquim uma coisa assim, palavras do meu director, «como que a geografia erótica do poeta». Afinal de contas, e em bom chileno, fazer-lhe falar do modo mais gráfico possível das mulheres que tinha engatado.

Hospedagem na pensão da Ilha Negra, viático de príncipe, automóvel alugado à Hertz, e empréstimo da sua Olivetti portátil, foram os satânicos argumentos com que o director me convenceu a levar a cabo a ignóbil proeza. A estas argumentações, e com o idealismo da juventude, eu acrescentava outra acariciando um manuscrito interrompido na página 28: à tarde iria escrever a crónica sobre Neruda e durante as noites, ouvindo o som do mar, avançaria com o meu romance até acabá-lo. E mais, propus-me uma coisa que se tornou obsessão, e que me permitiu também sentir uma grande afinidade com Mario Jiménez, o meu herói: conseguir que Pablo Neruda prefaciasse o meu texto. Com esse valioso troféu bateria às portas da Editorial Nascimento e conseguiria ipso facto a publicação do meu livro dolorosamente adiado.
(...)

Sei que mais que um leitor impaciente estará a perguntar-se corno é que um mandrião acabado como eu pôde terminar este livro, por muito pequeno que seja. Uma explicação plausível é que demorei catorze anos a escrevê-lo. Se se pensar que neste lapso de tempo Vargas Llosa, por exemplo, publicou Conversação na Catedral, A Tia Júlia e o Escrevedor, Pantaleão e as Visitadoras e A Guerra do Fim do Mundo, é francamente um recorde do qual não posso orgulhar-me.
(...)
Beatriz González, (...) quis que eu contasse por ela a história de Mario, «não importa quanto demorasse nem quanto inventasse». Assim, desculpado por ela, incorri em ambos os defeitos".


Excerto do Prólogo de O CARTEIRO DE PABLO NERUDA, de António Skármeta.

Delicioso, não se fiquem por esta migalha se podem comer o bolo todo! Eu já estou toda lambusada! :)

2 comentários:

Anónimo disse...

Simplesmente AMEI seu blog!
Não sei se é bibliotecária, mas me pareceu, por algumas imagens que vi! Então feliz dia do bibliotecário :D
Bjos

Ana disse...

Lyani,
Sou bibliotecária e é uma profissão que gosto muito de exercer!
Muito Obrigada!
Bjs
Ana

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