- Queres que pare?
e não valia a pena parar porque não reparava em mim. O que lhe terá acontecido? Casou? Teve filhos? Ou continua no mesmo prédio, de tranças, sem me ligar nenhuma? Deve continuar no mesmo prédio, de tranças, sem me ligar nenhuma, porque carga de água havia de me ligar? Ligava o professor
- Escreve aí no quadro uma oração subordinada
e deu-me um estalo porque escrevi soburdinada. Até hoje acho soburdinada mais bonito. O professor era uma besta de violência, distribuía chapadas pela aula e eu queria ficar grande num instante para lhe aplicar uma sova. Quando fiquei grande procurei-o na lista telefónica para lhe devolver os estalos: nunca o encontrei e ninguém sabia dele. Nos intervalos de bater tirava pêlos do nariz ou mandava-nos comprar-lhe cigarros. (...)
- Estás a pensar na morte da bezerra, tu?
- Não, senhor André
- Então vem aqui ao quadro escrever uma oração subordinada.
Tudo isto me regressou, num vómito instantâneo de imagens, mal a minha prima Ana Maria
- António
de braços abertos na rua, mais baixa que eu, que esquisito. Os olhos dela iguaizinhos, redondos, uma festa que me soube tão bem na cara. Depois acenámos adeus e fui-me embora. Entrei no carro, vim para aqui fazer isto. Acabei o livro, estou vazio. No meio da prosa chegam traduções minhas em grego que a agência mandou por esses correios especiais em que a gente tem de assinar um papel. Assino sempre na linha errada e o empregado diz sempre
- Não faz mal.
Desta foi em grego, da última em macedónio ou polaco. E aparece logo o senhor André a anunciar aos gregos, aos macedónios, aos polacos
- Escreve soburdinada, o camelo
num desprezo sem fim, e os gregos, os macedónios e os polacos a concordarem, escandalizados. Devem achar os estalos merecidos:
- Soburdinada, que horror, anda a gente a publicar este artolas
e o artolas, distraído deles, a pensar na morte da bezerra. Não: o artolas, distraído deles, a respirar o vapor do caneiro, espantado com os ratos. Não: o artolas a hesitar como se acaba esta crónica. Não a acabes, artolas: fica assim".
Excerto da Crónica de António Lobo Antunes para a Revista Visão desta semana. Podem ler o texto completo aqui. Os destaques a negrito são meus.
Há anos que não ouvia/lia "artolas"! Já não é um insulto comum, o que lhe dá uma certa graça. :)
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