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quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A minha rendição a um romance de guerra

"Novels give you the matrix of emotions, give you the flavour of a time in a way formal history cannot."
Doris Lessing





Memória das Estrelas sem Brilho de José Leon Machado é um bom exemplo de como, ao embrenharmo-nos num romance, ao deixarmo-nos envolver emocionalmente pelas personagens, ao partilharmos as vivências do protagonista, entramos pelas portas do tempo numa época remota e enriquecemos o nosso conhecimento da História do nosso país:
 
"Na Memória das Estrelas sem Brilho, conta-se a história de um estudante universitário que é obrigado a interromper o curso para comandar um grupo de expedicionários que o governo português em 1917 enviou para as trincheiras da Flandres. A sua trajectória e a dos homens que comanda, nas pequenas e grandes misérias de que foram vítimas e na ligação ao que deixaram e ao que perderam, resulta num retrato emocionante e autêntico de um dos períodos mais conturbados da sociedade portuguesa.



Romance de guerra, mas também romance de amor, Memória das Estrelas sem Brilho relata a tão inútil quanto obstinada busca da paz e da felicidade através de um caminho de escombros e flores cortadas, capacho do tempo e dos seus caprichos".

(Texto da contra-capa)


Eu não sou fã de romances de guerra. As guerras implicam uma realidade grotesca, ignorante, gananciosa e ridícula. São uma manifestação de como a natureza humana pode tropeçar no défice de inteligência e cair na auto-destruição. Daí o facto de ter começado a ler este romance com algumas reticências.

No entanto, apresento aqui a minha rendição: à medida que a prosa vai ganhando ritmo, que as personagens se vão tornando familiares, que o protagonista e narrador Luís Vasques conquista a empatia do leitor (a opinião deste Alferes sobre a guerra acaba por ser essencialmente a minha) a leitura flui com uma facilidade telepática.

Além do mais, este romance é muito mais do que apenas de guerra. Traça um retrato, na minha humilde opinião fiel, da sociedade portuguesa, ao longo do Século XX (acompanhando o tempo de vida da personagem principal) com especial ênfase na participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Dá conta de uma relação de amizade vitalícia entre dois homens de natureza muito diferente. Partilha as deliciosas inconfidências da vida íntima, dos amores, das aventuras amorosas e sexuais das personagens (principalmente do Dr. Luís Vasques que era um grande marialva) :)))).

Ilustração Portugueza, No. 543, July 17 1916-22


Afirma o crítico Milton Azevedo que, «além de seu valor literário como narrativa de ficção propriamente dita, constatável à primeira leitura, o romance tem grande interesse como retrato da sociedade portuguesa, que forma o background da narrativa. O narrador, homem de seu tempo (ou tempos) e classe social, tem uma visão tão nítida da sua sociedade quanto é possível esperar de alguém que nunca pôde sair dela para observá-la de fora. É, portanto, uma visão naïve, informada apenas por elementos colhidos dentro daquela sociedade. Mas é uma visão arguta, porque o narrador é um indivíduo inteligente e lúcido. E complementada, é claro, pela visão, indirectamente transmitida ao leitor, do Rato, que é um verdadeiro co-protagonista (e não apenas um sidekick) - um pouco, mutatis mudantis, como Sancho Pança, sem o qual o Quixote ficaria impensável.»


Gosto desta analogia entre as principais personagens masculinas deste romance e D. Quixote e Sancho Pança. Adequada.



 
Ilustração Portugueza, No. 485, June 7 1915 - 17




"Não se pode falar da guerra a quem nunca a viveu. Po r mais pormenores que se contem do horror por que passámos, o que escuta nunca o poderá compreender inteiramente. Alguns fazem até um ar de incredulidade, como se não fossem possíveis tais atrocidades. Que exageramos para nos mostrarmos valentes. Que aquilo foi uma peluda, um passeio à França pago pelo governo. Só podemos partilhar o horror com alguém que também lá esteve e viu o sangue das feridas, e ouviu os gritos dos moribundos, e enterrou a cabeça na lama para escapar aos estilhaços dos obuses e dos morteiros, que sentiu o cheiro a gás, que viu pedaços de seres humanos espalhados pelo chão e ratos a passear por cima. Por mais que deseje esquecer, é o cheiro da trincheira que me perpassa pelo nariz quando, depois da chuva, dou um passeio pelo campo". (p. 25)







"Às vezes, ponho-me a pensar que o nosso esforço na guerra foi em vão. Que os milhões de mortos de um lado e do outro entre 1914 e 1918 não poderão nunca ser justificados; que a perda da inocência e da energia da juventude dos que voltaram não passou de um absoluto desperdício. O mundo, de facto, não ficou melhor. Muitos pensavam que aquela seria a última de todas as guerras e que depois o mundo viveria para sempre em paz. Porque o horror foi de tal ordem, que nenhuma nação teria a partir daí coragem para iniciar um novo conflito. Vã ilusão". (p. 28)











"A minha missão no regimento em Braga era a de preparar um pelotão de trinta recrutas para partir para a Flandres quando o comando e, antes dele, o governo, assim o determinassem. (...) Apresentaram-me trinta homens desenraizados das suas aldeias minhotas. Havia apenas três que sabiam ler e desses apenas um sabia escrever. Poucos sabiam o nome do Presidente da República e a maior parte pensava que D. Manuel II ainda era o rei. Não faziam a mínima ideia onde era a França e queriam voltar quanto antes para as suas terras, onde deixaram a família e os milheirais. Não queriam, como chegou a escrever o General Gomes da Costa mais tarde, «intervir numa guerra cujas causas ignoravam.» Este sentimento não era apenas dos recrutas. Era um sentimento generalizado em todo o exército. Havia um ou outro oficial que, ou por estupidez patriótica, ou por interesses de carreira, ou porque simplesmente era filiado nalgum dos partidos republicanos, tentava alentar as tropas". (p. 37)






"A instrução com o armamento foi o mais problemático. O quartel dispunha de espingardas do século passado, enormes e pesadas, muitas delas de carregar pela boca e quase nenhuma a funcionar. Se funcionassem, não havia munições para o tiro ao alvo. Por isso, andávamos com eles a correr na mata de Montélios a apontar ao inimigo e a simular o tiro com a boca: Pum, pum. O sargento, que tinha passado uma temporada em Moçambique e assistiu a fogo real, explicava indignado: – É prás, prás, e não pum, pum, seus nabos". (p. 39)








Pode fazer download das primeiras páginas deste romance AQUI.


Imagens da lllustração portugueza retiradas DAQUI.


As últimas quatro imagens integram a Exposição Viva República 1910-2010 AQUI.

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