Acabei de ler Expiação, Atonement na sua versão original, Reparação na versão brasileira. O autor é Ian McEwan. Como já não é a primeira vez que me acontece, foi o filme que me empurrou para o livro. Adorei o filme (Joe Wright, 2007). Após a leitura do romance, concluí que o filme consegue, recorrendo habilmente a flashbacks, ser fiel ao livro. Tal não se revela fácil visto haver um jogo de perspectivas em que o mesmo acontecimento é visto essencialmente de duas maneiras diferentes: como realmente se passou e filtrado pelo olhar ingénuo e fantasioso de uma menina de 13 anos, Briony.
Em Expiação acompanhamos o emergir de uma relação latente amor-ódio entre Cecilia, a filha mais velha de uma abastada família britânica, e Robbie, jardineiro daquela propriedade e a quem foi facultada pelo patrão uma educação acima da sua esfera social.
A vivência deste amor acaba por se revelar impossível de forma tragicamente injusta, minada pela perspectiva ingénua e teimosa de Briony, a irmã mais nova de Cecilia, ao acusar Robbie, de um crime que ele não cometeu. Ao interpretar erradamente o que vê, Briony, inventa uma mentira que vai resultar na condenação de um homem inocente à prisão.
A eclosão da Segunda-Guerra Mundial vai dar contornos verdadeiramente trágicos a esta história de amor assim como um peso épico na culpa de Briony e nas consequências da sua irreparável mentira, de quando ainda era apenas uma criança.
A única expiação possível para tamanha culpa é a escrita, essencialmente este romance.
Sobre o livro importa ainda dizer:
O peso da injustiça e da tragédia, do amor por cumprir e da violência da guerra sente-se mais no livro, tornando-o mais triste que o filme. Há uma passagem em que Robbie caminha em direcção à casa e ao jantar em que o ponto de viragem acontecerá, sentido o gosto da liberdade e de todas as possibilidades de futuro que tem pela frente, quer em termos afectivos quer profissionais:
"Uma palavra encerrava tudo o que ele sentia e explicava por que recordaria com insistência aquele momento depois. Liberdade. Na vida e nos braços e nas pernas. (...) Agora, finalmente, com o exercício de sua vontade, sua vida adulta tivera início. Estava tecendo uma história em que ele próprio era o protagonista, e a cena inicial já causara um certo espanto em seus amigos. (...) Nunca antes tivera tanta consciência de sua juventude, nem experimentara tamanho apetite, tamanha impaciência, para que a história começasse logo". (pp. 50-51)
Umas horas depois, todas estas promessas de futuro estariam irremediavelmente perdidas...
Esta menina de treze anos é a personagem mais fascinante do livro, assim como, vimos mais tarde a perceber, a narradora madura de toda a história. No último capítulo dirige-se ao leitor já como escritora assumida, nos seus 70 anos e doente.
Algumas das passagens mais notáveis vêm indiscutivelmente de Briony e dos seus devaneios precoces sobre a sua escrita:
"A maneira mais simples de impressionar Leon teria sido escrever uma história para ele, colocá-la em suas mãos e ficar olhando para ele enquanto lia. As letras do título, a capa ilustrada, as páginas encadernadas, amarradas — essa palavra por si só continha o fascínio daquela forma clara, limitada e incontrolável que ela deixara para trás ao decidir escrever uma peça. Uma história era algo direto e simples, que não permitia que nada se intrometesse entre ela e seu leitor — nenhum intermediário incompetente e cheio de ambições próprias, nenhuma pressão de tempo, nenhuma limitação de recursos. Na história era só querer, era só escrever e ter um mundo inteiro; numa peça era necessário utilizar o que estava disponível: não havia cavalos, não havia ruas, não havia mar. Não havia cortina. Agora que era tarde demais, a idéia lhe parecia óbvia: uma história era uma forma de telepatia. Por meio de símbolos traçados com tinta numa página, ela conseguia transmitir pensamentos e sentimentos da sua mente para a mente de seu leitor. Era um processo mágico, tão corriqueiro que ninguém parava para pensar e se admirar. Ler uma frase e entendê-la era a mesma coisa; era como dobrar o dedo, não havia intermediação. Não havia um hiato durante o qual os símbolos eram decifrados.
A gente via a palavra castelo e pronto, lá estava ele, visto ao longe, com bosques verdejantes..." (p. 22)
"Briony deu-se conta de que poderia escrever uma cena como aquela ocorrida junto à fonte e que poderia incluir um observador oculto, como ela própria. Imaginava-se agora correndo para seu quarto, pegando um bloco de papel pautado e sua caneta-tinteiro de baquelita marmorizada. Já via as frases simples, os símbolos telepáticos se acumulando, fluindo da ponta da pena. Poderia escrever a cena três vezes, de três pontos de vista; sua excitação era proporcionada pela possibilidade de liberdade, de livrar-se daquela luta desgraciosa entre bons e maus, heróis e vilões. Nenhum desses três era mau, nenhum era particularmente bom. Ela não precisava julgar. Não precisava haver uma moral. Bastava que mostrasse mentes separadas, tão vivas quanto a dela, debatendo-se com a idéia de que as outras mentes eram igualmente vivas. Não eram só o mal e as tramóias que tornavam as pessoas infelizes; era a confusão, eram os mal-entendidos; acima de tudo, era a incapacidade de apreender a verdade simples de que as outras pessoas são tão reais quanto nós. E somente numa história seria possível incluir essas três mentes diferentes e mostrar como elas tinham o mesmo valor. Essa era a única moral que uma história precisava ter.
Seis décadas depois, ela mostraria como, aos treze anos de idade, havia atravessado, com seus escritos, toda uma história da literatura, começando com as histórias baseadas na tradição folclórica européia, passando pelo drama com intenção moral simples, até chegar a um realismo psicológico imparcial que descobrira sozinha, numa manhã específica, durante uma onda de calor em 1935". (p. 24)
A ilusão de um final feliz.
Nota: A edição que li é a portuguesa, da Gradiva, no entanto as citações aqui apresentadas e a respectiva paginação são de uma edição brasileira disponível no Scribd.
Sem comentários:
Enviar um comentário