Mais uma ilustração do genial Fernando Vicente.
Como escrevem os escritores? Por que territórios da escrita se aventuram para deixar visíveis os rastos no papel? E a que instrumentos recorrem para gravar a consternação do mundo?
Primeiro, há a página em branco que é a praia onde se derrama a escrita. E que pode ser, também, a figura atrás da qual se escondem os rostos dos escritores. Muitos escrevem na banal folha A4 espécie de praia comum e sem surpresas, pronta a ser apagada pela subida da maré, que é como quem diz, a ser jogada no cesto dos papéis sempre que a corrente da escrita segue um curso diferente daquele que o escritor procura.
Mas a praia, qualquer praia de papel, nunca é virgem, a areia da página já foi percorrida de uma ou outra maneira e a sua geografia condiciona a inscrição da escrita. A lápis, com caneta de tinta permanente, com esferográfica ou, mecanicamente, utilizando a máquina de escrever, ou a tecnologia do computador, o suporte da escrita condiciona a sua inscrição.
Heidegger desconfiava da técnica, da máquina de escrever: «A máquina de escrever arranca a escrita ao domínio essencial da mão, ou seja, da palavra». Outros evocam a máquina de escrever como instrumento de escrita a contra-relógio. «Veio-me à memória um [filme] onde um escritor que não tinha dinheiro encontrava o lugar ideal para escrever, a sala de dactilografia da cave biblioteca da Universidade de Austin. Ali, em filas ordenadas, havia uma dúzia de velhas Remington ou Underwood que se alugavam por dez centavos a meia hora. O escritor metia a moeda, o relógio começava o seu tiquetaque enlouquecido, e o escritor punha-se a escrever como um selvagem para acabar o seu conto antes que o tempo se esgotasse» (in Doutor Pasavento, Enrique Vila-Matas). Nesse tempo havia ainda alguma intimidade entre os escritores e as máquinas de escrever, que até tinham nomes de gente: Remington, Olivetti ou de deuses, como Hermes, o deus das mensagens. Eram nomeáveis e fiáveis, à medida do nosso desejo. Delas, disse Clarice Lispector que «O ruído baixo do teclado acompanha directamente a solidão de quem escreve». Talvez por isso, Álvaro Mutis continue, ainda, a escrever na mesma Smith Corona onde inventou Maqrol.
Hoje, os computadores, que têm nomes metálicos, baniram as máquinas de escrever, instaurando uma modalidade de escrita sujeita a margens, barras, menus, ferramentas, conexões, links… que tolhem errância na praia deserta da página, deixando-nos mais sós. Ou talvez não. Para Bragança de Miranda, o seu computador «é uma selva de heterónimos, um drama em máquinas», por isso, estima-o como se fosse a «última máquina». Mas se é verdade que por culpa do computador as máquinas de escrever já quase desapareceram, as ferramentas que são uma espécie de extensão da mão – o lápis e a caneta – resistem, deixando os seus rastos em qualquer folha de papel.
Como Hermann Hesse que escrevia nas costas de folhas de calendário, em facturas, em provas tipográficas, anúncios, sem fazer esboços ou correcções. Ou Novalis que em folhas limpas desenhava belas iniciais como se pretendesse imitar as iluminuras medievais, aventurando-se num romance fragmentário. Ou Hemingway e Bruce Chatwin que escreviam em cadernos moleskine. Ou Robert Walser que escreveu a lápis 526 «microgramas» em folhas separadas: envelopes, margens das folhas dos jornais, formulários oficiais, etc., autênticos labirintos de escrita que levaram vinte anos a ser decifrados e foram recentemente editados em duas mil páginas com o título Território do lápis (para quando a sua edição em Portugal?). Ou Robert Musil cujo fogo da escrita só verdadeiramente incendiava o papel no momento da correcção das provas tipográficas. Ou Jack Kerouac que, num ritmo alucinante alimentado a café e ao som do jazz improvisado, como se fosse um Proust «só que mais rápido», como ele gostava de afirmar, dactilografou Pela Estrada Fora num parágrafo único, sem pontuação num rolo de trinta e seis metros de comprimento que o próprio manufacturou juntando 13 folhas de papel com três metros de comprimento cada uma, coladas com fita-cola e recortadas depois para que pudessem entrar na máquina. «Um único e magnífico parágrafo, de vários quarteirões, rodando, como a estrada em si», disse Allen Ginsberg. Ou Alexander Kluge que escreve, primeiro, num caderno escolar e só depois trancreve para o computador onde redistribui capítulos. Ou António Lobo Antunes que continua a escrever em folhas de prescrição médica do hospital Miguel Bombarda. Ou, numa situação extrema, Vila-Matas que numa viagem de avião, tendo esquecido o diário em casa, transformou o saco higiénico da Ibéria num rascunho de ideias destinadas a uma crónica espasmódica.
Eis como sempre se escreveram os livros, sujeitos às várias modalidades de deambulação pelos territórios do papel, por geografias secretas cujo itinerário o escritor persegue e onde grava com ferramentas pessoais a memória do mundo.
Bonito texto escrito por João Ventura em O leitor sem qualidades.
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