domingo, 19 de janeiro de 2014

"Poeta Castrado Não"!!!

Ary dos Santos.



Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:


cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.


Serei tudo o que disserem:


Poeta castrado não!


Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:


ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegada poesia
quando ela nos envenena.


Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:


De fome já não se fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?


Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!


- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia !


Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:


Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.


Serei tudo o que disserem:


Poeta castrado, não!


in SANTOS, Ary dos. - Resumo. Lisboa, 1973."

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