«Os manuais de jardinagem explicavam que um jardim sem muro era mais propenso ao ataque das ervas daninhas. Com um muro alto, era mais difícil as sementes disseminarem-se pela acção do vento. Por outro lado, a sombra do muro impedia a proliferação dessas ervas que, por serem endémicas, preferiam o sol. Havia espécies de plantas ornamentais que se davam bem à sombra e os manuais aconselhavam o seu plantio. Nada disto, porém, era exacto. Apesar do muro, no jardim do sr. Lindolfo proliferavam os dentes-de-leão, as leitugas, as macelas e os beldros. Enquanto isso, as rosas, as petúnias e os amores-perfeitos, se não fossem constantemente vigiados, estiolavam.
O jardim humano, mesmo assim, era bem mais complexo. Os muros que a sociedade foi construindo para salvaguardar uma pretensa moral iam desabando. Nenhum herbicida, nenhuma monda seria capaz de expurgar os dentes-de-leão da sociedade. Simplesmente porque deixaram de ser considerados ervas daninhas. São ervas entre outras, com a sua especificidade, as suas características próprias, fruto dos mil caprichos da natureza.»
Esta é uma passagem de Jardim sem Muro, de José Leon Machado (2007), o último livro que li. Depois de ler A Estrada, estava a precisar de uma leitura mais leve e bem-humorada e achei-a nesta colectânea de contos. Trata da vida de personagens que nos parecem pessoas reais, mais ainda, familiares. Poderiam ser nossos vizinhos, colegas, "portugas" como nós. :) Sobretudo gente do norte, muitos emigrantes portugueses, alguns professores, algumas imigrantes brasileiras...
Neste livro não há deslumbres de linguagem, malabarismos linguísticos ou overdoses de recursos estilísticos. O escritor não se dispersa. Não há excessos. A escrita é enxuta e não há lugar para palavras supérfluas. (O que não é fácil de conseguir: aliás é esse o desafio do conto enquanto narrativa curta).
É a ironia que confere a estes contos o seu principal factor de atracção. É difícil suspender a leitura a meio de um conto: a expectativa inquieta e diverte. O travo irónico da escrita promete a recompensa e o sorriso que vem com o ponto final.
Conheça o Calheiros, pequeno empresário da construção civil, cinquentão atrevido que tenta seduzir uma jovem estagiária com idade para ser sua filha. No conto A Nova Gestora.
Em O Despiste, veja como o Mouta, emigrado na Suiça com a mulher e os filhos, vindo passar o Natal sozinho à terra natal, sucumbe a um momentâneo acesso de fervor religioso entre duas idas à casa de alterne local.
Internautas é sobre as andanças de Lucas, funcionário de repartição de finanças que, aos 34 anos, apanhou o vício da Internet, dos chats românticos (será que detecto aqui um oxímoro?) e das visitas assíduas aos sites pornográficos. É numa dessas noitadas virtuais que conhece a Doidinha, fogosa brasileira, com quem inicia relação romântica e sexual transatlântica.
Quanto a Os Canalizadores, saiba que se o título do conto pode parecer banal e pouco literário, nas suas linhas vai encontrar o mito de Adão e Eva entre canos, tubos de cobre e PVC. :)
Recomendo vivamente a leitura destes contos em cuja leitura encontramos a ironia que reconhecemos na vida.
"Jardim sem Muro é uma colectânea de dezanove contos. As personagens baseiam-se nalguns dos tipos da sociedade portuguesa actual, aparecendo vendedores de automóveis em segunda mão, comerciantes de tintas e vernizes, empreiteiros, serralheiros, canalizadores, carpinteiros, electricistas, professores do ensino secundário, funcionários das Finanças, estudantes de Psicologia, reformados, emigrantes, agentes de segurança, viciados na Internet, coleccionadores de selos e moedas, especialistas em ciências ocultas, frequentadores de casas de alterne e respectivas funcionárias. Os políticos, por evidente falta de utilidade na sociedade, são das poucas figuras com que o autor não perdeu tempo nem gastou papel. Os contos, escritos num tom divertido, deixam transparecer o sorriso sarcástico de Eça de Queirós e o piscar de olho malandro de David Lodge". (Edições Vercial).
2 comentários:
Prezada Ana,
Também li Jardim sem Muro há algum tempo e certamente o escritor José Leon Machado marcará o nosso tempo com a incrível capacidade que tem de traduzir o real para as páginas de um livro, provocando reflexões, maior observação de mundo e muito, muito divertimento. Apreciei demasiado a personagem que mata o marido eletrocutado. O escritor sempre consegue surpreender, não é mesmo. Perceber um talento como esse é uma alegria para leitores que são diariamente bombardeados com maus textos.
abraço
Fernanda Macahiba (Brasil)
Fernanda,
também gostei muito desse conto. Ilustra bem a violência doméstica, os maus-tratos e humilhações por que passam muitas mulheres e as levam por vezes a actos extremos e desesperados.
Grata pelo comentário.
Ana T.
Enviar um comentário