quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Todos os homens são maricas quando estão com gripe

TODOS OS HOMENS SÃO MARICAS QUANDO ESTÃO COM GRIPE


Pachos na testa
Terço na mão
Uma botija
Chá de limão
Zaragotoas
Vinho com mel
3 aspirinas
Creme na pele
Dói-me a garganta
Chamo a mulher
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer
Mede-me a febre
Olha-me a goela
Cala os miúdos
Fecha a janela
Não quero canja
Nem a salada
Ai Lurdes, Lurdes
Não vales nada
Se tu sonhasses
Como me sinto
Já vejo a morte
Nunca te minto
Já vejo o inferno
Chamas, diabos
Anjos estranhos
Cornos e rabos
Vejo os demónios
Nas suas danças
Tigres sem litras
Bodes de tranças
Choros de coruja
Risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes
Que foi aquilo
Não é a chuva
No meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes
Fica comigo
Não é o vento
A cirandar
Nem são as vozes
Que vêm do mar
Não é o pingo
De uma torneira
Põe-me a santinha
Á cabeceira
Compõe-me a colcha
Fala ao prior
Pousa o Jesus
No cobertor
Chama o doutor
Passa a chamada
Ai Lurdes, Lurdes
Nem dás por nada
Faz-me tisanas
E pão-de-ló
Não te levantes
Que fico só
Aqui sozinho
A apodrecer
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer.



Letra de António Lobo Antunes, de uma música do álbum
Eu que me comovo por tudo e por nada, de Vitorino, editado em 1992. Com títulos tão sugestivos como Bolero do coronel sensível que fez amor em Monsanto, Canção para a minha filha Isabel adormecer quando tiver medo do escuro ou
Fado da prostituta da Rua de Sto António.


Deixo também o

TANGO DO MARIDO INFIEL NUMA PENSÃO DO BEATO

Sem tempo para ter tempo

De ter tempo de te dar

O tempo que tu mereces

Prazeres em que tu morresses

Manhãs que não amanheces

E arrepios que estremeses

Na boca de te beijar

Fico sentado no quarto

Desta cama de pensão

Ausente, despido farto

Cansado dessas mulheres

Que ouvem sem me escutar

Que me olhem sem me ver

Que me amem sem saber

Que me roçam sem tocar

Que me abraçam sem paixão

Que ignoram que eu anoiteço

Que me emsombro que escoreço

Que me enrudo e envelheço

Me pragueio e apodreço

E a quem pago o que me dão:

Uma espécie de ternura

Uma imitação de amor

Lençóis que são sepultura

De carícias sem doçura

E dos meus lábios sem cor

Ai dedos no cabelo

Quero a minha raiva toda

Quero domá-la e vencê-la

Quero vivê-la ao meu modo

Até encontrar por fim

Aquela voz de menino

Há tantos anos perdida

Há tanto tempo esquecida

Em soluços dissolvida

A gritar dentro de mim.



ANTUNES, António Lobo. Letrinhas de Cantigas. Lisboa : Dom Quixote, 2002.

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