Entretanto, Salvador Allende ganha as eleições e as mudanças políticas sucedem-se vertiginosamente no país até acabarem por afectar gravemente as vidas dos habitantes da Ilha Negra.
A partir da
--> amizade entre o grande poeta Pablo Neruda e o humilde carteiro que o venera e que com ele quer aprender poesia (a acção do romance passa-se por volta de 1970, até à morte do poeta em 1973) ficamos a saber um pouco mais sobre a história do Chile e as suas tormentas políticas.
Mas apreendemos tudo com prazer através da mestria na escrita e do humor de Antonio Skármeta. É muito, muito bom!
Deixo aqui alguns excertos do preâmbulo que abrem logo o apetite para a leitura:
"Nos gabinetes húmidos dessa redacção agonizavam todas as noites
as minhas ilusões de ser escritor. Ficava até de madrugada a começar novos
romances que deixava a meio do caminho desiludido com o meu talento e a
minha preguiça. Outros escritores da minha idade obtinham considerável
sucesso no país e até prémios no estrangeiro: o da Casa das Américas, o da
Biblioteca Breve Seix-Barral, o da Sudamericana e Primera Plana. A inveja,
mais que um incentivo para acabar alguma vez uma obra, funcionava em
mim como um duche frio.
Pelos dias em que cronologicamente começo esta história — que tal
como os hipotéticos leitores notarão arranca entusiasta e termina sob o efeito
de uma profunda depressão — o director reparou que a minha passagem
pela boémia tinha aperfeiçoado perigosamente a minha palidez e decidiu
encomendar-me um serviço à beira-mar, que me consentisse uma semana
de sol, vento salino, marisco e peixe fresco, e de caminho importantes
contactos para o meu futuro. Tratava-se de assaltar a paz marítima do poeta
Pablo Neruda, e através de encontros com ele, conseguir para os
depravados leitores do nosso pasquim uma coisa assim, palavras do meu
director, «como que a geografia erótica do poeta». Afinal de contas, e em
bom chileno, fazer-lhe falar do modo mais gráfico possível das mulheres que
tinha engatado.
(...)
Para não tornar este prólogo eterno e evitar falsas expectativas aos
meus remotos leitores, concluo esclarecendo desde já alguns pontos.
Primeiro, a novela que o leitor tem nas mãos não é a que eu quis escrever na
Ilha Negra nem qualquer outra que eu já tivesse começado naquela época,
mas sim um produto colateral do meu .fracassado assalto jornalístico a
Neruda. Segundo, apesar de vários escritores chilenos continuarem a beber pela taça do sucesso, (entre outras coisas por frases como estas, disse-me
um editor) eu permaneci — e permaneço — rigorosamente inédito. Enquanto
outros são mestres da narração lírica na primeira pessoa, do romance dentro
do romance, da metalinguagem, da distorsão de tempos e espaços, eu
continuei adscrito a metaforonas transplantadas do jornalismo, lugares comuns
respigados dos crioulistas, adjectivos guinchantes mal entendidos
em Borges, e sobretudo agarrado ao que um professor de literatura designou
com nojo: um narrador omnisciente.
(...)
Sei que mais que um leitor impaciente estará a perguntar-se corno é que um
mandrião acabado como eu pôde terminar este livro, por muito pequeno que
sela. Uma explicação plausível é que demorei catorze anos a escrevê-lo. Se
se pensar que neste lapso de tempo Vargas Llosa, por exemplo, publicou
Conversação na Catedral, A tia Júlia e o Escrevedor, Pantaleão e as
visitadoras e A guerra do fim do mundo, é francamente um recorde do qual
não posso orgulhar-me".
Este é o narrador que nos conduz através da história da amizade entre Mario e Neruda, e é impossível não apreciar a sua voz e a sua bem-humorada companhia.
Verdadeiramente de-li-ci-o-so!!!
1 comentário:
Adorei!
Tive a sorte de ver o filme primeiro e é um dos meus preferidos, como se sabe o livro é sempre melhor que o filme, portanto....é de não perder.
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