Caçada nocturna
À noite todas as putas são pardas. Sigo pelas ruas secundárias da cidade, mas a bicha faz parecer que estamos na hora de ponta. Bom, a zona das bichas é mais no Conde Redondo, mas não pode dizer-se que, por aqui, não estejamos na hora de ponta.
É vê-los. É verem-me. A fila de putanheiros sabe do que falo. Temos que esperar pela nossa vez. Há um código de respeito. E de vergonha. Não me vejam. E eu não os vejo. Só as putas são visíveis. Os olhos têm destinatários. Mas os meus fraquejam.
Durante o dia, parado nas filas de trânsito, penso no que irei fazer nestas noites. E nestas noites, parado num trânsito de pilas, penso no que ando a fazer dos meus dias. Estradas alternativas que vão dar a casa de alguém. Onde alguém espera por alguém.
Sigo pelo Técnico ao Saldanha. Aqui tudo piora. Estou a subir, mas sinto o sangue a baixar-me o juízo. Temos que esperar a nossa vez. E procurar, procurar sempre. Não ver para não ser visto. É essa a regra. Respeito ao código dos putanheiros.
Uma volta ao quarteirão. Duas voltas ao quarteirão. E elas não ficam mais bonitas nem à terceira. Nem à quarta. Eu também não fico mais sóbrio. Estou cansado. Farto.
Aqui não há desejo. É tudo expectativa. Sigo pela Artilharia Um. Dois. Três. Queimei um vermelho junto à prisão. E penso queimar um verde. Para mim, as quintas-feiras são verdes. As quartas amarelas. E as putas são pardas. Pardo não é bem uma cor. E isto não é bem uma vida. Quanto muito, algo suspenso no meio disso. Amanhã é quinta e será queimada pelo sol que não tarda. Esperar pela nossa vez e respeitar o código.
Houve um tempo em que eu parava o carro quando chegava a minha vez. Aqui não há prazer. É tudo consumação. Desilusão e cansaço. Havia a Kali, a rainha senegalesa. E havia a Veronika, a bailarina ucraniana. Veronika não falava português, era toda gesto. Mas isso pouco importava. A comunicação entre putas e putanheiros dispensa a palavra e até a língua. Sai mais caro. De resto, é tudo o mesmo. Putas e putanheiros. Até a palavra é a mesma. Caça e caçador. O caçador carrega a dor que a caça não sentirá.
Nós somos aquilo que consumimos. E aquilo que nos consome reclama, com razão, a nossa propriedade. Sigo pela rua António Maria Cardoso e viro à direita. Era ali que costumava estar a Senhora Dona. Acho que morreu de tudo. Abatida por tudo. Logo ela, tão dada a nada. Ao fim de alguns anos, estas caçadas tornam-se muito parecidas.
Indistintas como as noites. O lado bom é que as presas são muitas. O mau é que sabem todas ao mesmo. O preço a pagar também é sempre o mesmo. Pouco e demasiado.
Sigo pela Antero de Quental. Agora, de repente, sinto que podia parar. Podia inverter a marcha, virar à esquerda e seguir em frente. Parar no vermelho e salvar o verde. Estaria em casa. Onde habito. Mas é cedo como se fosse ainda ontem. Anteontem e antes disso. Ou talvez seja tarde. Depois de amanhã e ainda depois de depois de amanhã. Esperar.
Temos que esperar a nossa vez. Procurar. Insistir. Não ver para não ser visto. É essa a regra. O código. Viro à direita para mais umas voltas ao quarteirão. Tudo o que eu quero é parar. Ir para casa. Arranjar uma casa. Dormir. Arranjar alguém com quem dormir. Parar. Arranjar alguém que me faça parar. Só quero que acabe. Que pare. Mas também sei que é então que tudo, normalmente, começa. Não sei se estão a ver.
Pastor Flores, in Nunca Nada Ninguém
Publicado no Jornal de Letras em 7 de Janeiro de 2011
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