Entrou-me no quarto qualquer coisa que veio com o vento. Não consigo vê-la bem, e, curiosamente, não tenho medo nenhum. É uma coisa poderosa e tem que ser boa, porque a Bolota não rosnou nem arrepelou o pêlo. Limitou-se a saltar imediatamente para o chão, como que a dar-lhe o seu lugar ao meu lado. O que quer que seja, já tocou na minha pele de uma forma muito doce. Aqueceu-me logo nesta noite fria. Está a enroscar-se ao meu lado sem qualquer cerimónia. Só pode ser um animal. Um animal muito quente. (...) Esta criatura fala. E isto é linguagem articulada. Mas é só quando me abraça toda com infinita doçura - pernas, braços, mãos, cabelos, pescoço, queixo - que me dou plenamente conta do meu erro. Este animal é um homem. Foi um homem que voou pela minha janela, no sopro dos zéfiros nocturnos.
(...)
Não. Bastou um sopro, um passe de capa do vento, e o arcanjo já se foi embora. O Mal que aguente a sua investida, porque na minha cama a parada subiu de tom. Não sei quem me possui desta maneira. Nem sequer sabia que era possível voar tão alto à superfície da Terra. Volto a fechar os olhos, volto a deixar-me levar, sinto o suor deslizar pelos nossos corpos colados, oiço a respiração dele cada vez mais fremente nas narinas, e tudo no seu abraço enorme continua a dizer-me que não tenha medo. Quando abro os olhos, só me ocorre uma palavra - Bucéfalo.
Há qualquer coisa de inominavelmente grandioso em ser-se a mulher do garanhão negro que acompanhou Alexandre o Grande em todas as suas batalhas. E mais ainda em atingir o clímax com ele, num berro sem fim que sacode a montanha e cala o mar.
(...)
Levantei-me devagarinho, com a brisa doce e cheia de flores da manhã a brincar suavemente na trepadeira, para ir abrir a porta à Bolota. Sentia-me a cintilar por dentro. A criatura mitológica continuava ali em plena luz do dia.
Olha, querida, trazes-me um café lá de baixo? Se faz favor?
Que é isto?
Virei-me como se tivesse sido mordida por um bicho, com o coração a bater na garganta. Aquilo era um homem. Tinha-se sentado no meio das almofadas com o cabelo todo desgrenhado, e estava a acabar de acender um cigarro com um sorriso rasgado completamente canalha. Mas afinal tu falas?
Só quando vale a pena.
E tens por hábito entrar assim a voar, sem mais nem menos, a meio da noite, pela janela das pessoas?
Assim sem mais nem menos? Era o que faltava. Foi só mesmo porque quis ficar contigo.
Mas, prodígio. Eu tenho cinquenta anos. Quer-me parecer que já há muito tempo que não acredito em milagres, topas.
Eh pá, por pavor, tu poupa-me a conversa mole, fedelha. Eu tenho a idade da Terra, e estou farto de não passar de um mero prodígio, e não vejo por que é que, entre nós os dois, não há-de acontecer mesmo um milagre. Sinceramente. Ando há milénios para aí a fazer nascer Grandes Imperadores, Grandes Guerreiros, Grandes Navegadores, Grandes Artistas, Grandes Cientistas...
Livra. Só és capaz de engendrar homens?Também fui o pai da Joana d'Arc.
Uma maluca mascarada de homem?
Ouve lá. As mães tiveram todo o prazer, os filhos tiveram todas as dores de cabeça e todas as facadas no Senado, portanto acho que o jogo é mais que justo para o teu lado, ou sou eu que estou a delirar? E digo-te, o que eu realmente aprendi foi que, em todos os tempos, em todos os sítios, da mãe do Aristóteles à mãe do Obama, toda a gente acredita em milagres, ouviste, e isto digo-te eu, que já vi tudo, em toda a parte. Qual é o nosso milagre? Tu libertas-me da Eternidade, eu liberto-te da solidão... Gaita que és mesmo boa, mulher. Anda cá que eu faço-te já um filho daqueles normais.
Normais? Numa mulher em menopausa? A Bíblia está cheia delas.
Ao menos diz-me o teu nome, palerma.
E o café que eu já pedi há mais de três quinze dias, gaja? Não digo mais nada sem me trazeres o meu café.
Boa. Agora convenceste-me. És mesmo um homem. Vou buscar o café sem mais demora, chefe. E vais ficar por aqui quanto tempo, já agora, só para eu depois ir à mercearia comprar aquelas porcarias todas de que os homens gostam?
Ele espreguiçou-se todo de puro conforto, com o tal sorriso velhaco a ficar cada vez mais doce.
O resto da vida, estrela-do-mar.
Excertos do texto de Clara Pinto Correia que acompanha fotografias íntimas da escritora, da autoria do fotógrafo Pedro Palma, agora em exposição no Centro Cultural de Cascais, até ao dia 7 de Fevereiro.
Pode ler o texto na íntegra aqui.
Literariamente apimentado q.b..