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segunda-feira, 15 de julho de 2013

"A Sesta" de Verão de Almada Negreiros




A Sesta

Pierrot escondido por entre o amarelo dos girassóis espreita
em cautela o sono dela dormindo na sombra da tangerineira.
E ela não dorme, espreita também os olhos descidos, mentindo o
sono, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silêncios, por entre o
amarelo dos girassóis. E porque Ela se vem chegando perto,
Ela mente ainda mais o sono a mal-ressonar.
Junto d'Ela, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo
mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois
os joelhos redondos e lisos, e já se debruçava por sobre os
joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ela acordou
cansada de tanto sono fingir.
E Ele ameaça fugida, e Ela furta-lhe a fuga nos braços nus
estendidos.
E Ela, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a
fronte num grande perdão.E, feitas as pazes, ficou
combinado que Ela dormisse outra vez.

Almada Negreiros

quinta-feira, 11 de julho de 2013

A praia por David Mourão-Ferreira / Woman reading at the beach




Praia do Esquecimento

Fujo da sombra; cerro os olhos: não há nada.
A minha vida nem consente
rumor de gente
na praia desolada.

Apenas decisão de esquecimento:
mas só neste momento eu a descubro
como a um fruto rubro
de que, sem já sabê-lo, me sustento.

E do Sol amarelo que há no céu
somente sei que me queimou a pele.
Juro: nem dei por ele
quando nasceu.

David Mourão-Ferreira

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Hora de ponta / Rush hour


Leonard Jossel, '39, Subway (Cartoon), June 1938, v. 22, n. 2. "Vagabond Issue", p. 52.



Hora de ponta


Apanhar um lugar a esta hora é uma sorte, poder olhar
pela janela e fingir que tenho imunidade diplomática,
que estou de lá do vidro com o hálito das folhas, o sabor
a hortelã e um ar fresco interrompido pela velha senhora
a quem cedo o assento e um sorriso enquanto me agradece
de nada, de ir agora em pé empurrada, de cá do vidro
a apanhar uma overdose de realidade com o bafo quente
do homem gordo na minha orelha, com a mão livre
apertada contra o peito contra o visco da hora apinhada
na minha pele pública, na minha pele de todos.
No banco em frente uma mulher afaga a neta com o sorriso
doce e cansado, os olhos brilhantes; a candura intacta
toma-me toda como se eu fosse um anjo
descendo à terra com um corpo real para que a minha pele
receba a dádiva da tua, aceite os cheiros de um dia de trabalho,
o calor excessivo, a proximidade insustentável e leia no teu rosto
cada mandamento nos solavancos que nos atiram uns para
os outros. No teu rosto à hora de ponta aprendo a compaixão
até sair na próxima paragem com um suspiro de alívio.


ROSA ALICE BRANCO
366 poemas que falam de amor
Org. Vasco Graça Moura
Ed. Quetzal

terça-feira, 2 de julho de 2013

"Porque os outros se calam mas tu não"





Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


Sophia de Mello Breyner Andresen in Mar Novo (1958)

quinta-feira, 20 de junho de 2013

As flores agradecidas

Mónica Carretero



"Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura".


Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Projecto Diga um Poema




Projecto de leitura e arquivo colaborativa/o de poesia de poetas portugueses.
Escolha um poema de um poeta português. Diga o poema. Grave (Recomendamos - http://soundcloud.com/) e partilhe na nossa página. Simples. «Diga um Poema!»

"Este é um projecto que nasce hoje. Um projecto que é uma ideia simples. Escolher um poema de um poeta português. Dizer o poema num espaço público. Gravar o som desse momento. Partilhar. Simples. E com isto, procurar catalogar uma paisagem sonora, de Bragança a Faro, de vozes, formas de dizer, de falar, de sentir a Poesia em Portugal. Num país de poetas, diga um poema!"

Saiba mais AQUI.



domingo, 2 de junho de 2013

Quanta poesia e quanto palato português nesta "Salada de Alface"!!!



Salada de Alface

Se és algo panteísta e tens bem vivo
Esse afago ideal
Do retrocesso ao homem primitivo,
Que nos tempos pré-histórico vivia
Muito perto do lobo e do chacal;
Se um ligeiro perfume de poesia
Que se ergue das campinas
Na paz, no encanto das manhãs tranquilas,
Te dilata as narinas
E enche de gozo as húmidas, -
Leitor amigo, se assim és, vou dar-te
“Se a tanto me ajudar engenho e arte”
uma antiga receita,
que os rústicos instintos te deleita
e frémitos te põe na grenha hirsuta.
Leitor amigo, escuta:

Vai, como o padre cura, cabisbaixo
Pelos vergeis da tua horta abaixo
Quando no mês d’ Abril, de manhã cedo,
O sol cai sobre as franças do arvoredo,
Para sorver aqueles bons orvalhos
Chorados pelos olhos das estrelas
Nos corações dos galhos;
Passarás pelas couves repolhudas, -
Cuidado, não te iludas,
Nem te importes com elas, -
Vai andando...
Mas logo que tu passes
Ao campo das alfaces,
Pára, leitor amigo,
E faze o que te digo:
Escolhe d’ entre todas a mais bela,
Folhas finas, tenrinhas e viçosas
Como as folhas das rosas,
E enchendo uma gamela
D’ água pura e corrente,
Lava-a, refresca-a cuidadosamente.
Logo em seguida (e é o principal)
Que a tua mão, sem hesitar, lhe deite
Um fiozinho de azeite,
Vinagre forte e sal,
E ouvindo em roda o lúbrico sussurro
Da vida ansiosa a propagar-se, que erra
Em vibrações no ar,
Atira-te de bruços sobre a terra
E come-a devagar,
Filosoficamente, como um burro!

António de Macedo Papança, 1º Conde de Monsaraz (1852-1913) – Musa Alentejana

sexta-feira, 10 de maio de 2013

O pó dos livros por Pedro Mexia / Dusty books



Fotografia Getty


 



Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas
que sussurram)
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.


Pedro Mexia

sábado, 12 de janeiro de 2013

"E por vezes", um poema de David Mourão-Ferreira

 
E por vezes
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

"O acto sexual é para ter filhos"

"O acto sexual é para ter filhos"

João Morgado, Deputado do CDS
Debate sobre a despenalização do aborto
Assembleia da República, 3 de Abril de 1982

Resposta da Deputada Natália Correia - que fez rir todas as bancadas parlamentares, sem excepção:

“Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;

e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.

Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -

Uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.”
Brilhante!!! :D
Fonte: Fábrica de Escrita
 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

"Adeus" por Eugénio de Andrade

O poeta do início da minha adolescência. Depois vieram Sophia e Fernando Pessoa.

 

Adeus
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.






Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa”

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

" Velho, velho, velho chegou o Inverno" / Winter

 
 
 
INVERNO

 Velho, velho, velho
Chegou o Inverno.

Vem de sobretudo,
Vem de cachecol,

O chão onde passa
Parece um lençol.

Esqueceu as luvas
Perto do fogão:

Quando as procurou,
Roubara-as um cão.

Com medo do frio
Encosta-se a nós:

Dai-lhe café quente
Senão perde a voz.

Velho, velho, velho.
Chegou o Inverno.

Eugénio de Andrade (1923 –2005)

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

A um livro de mágoas um poema / A Florbela Espanca's poem

 


A um livro


No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que me deste.


Estranho livro aquele que escreveste,
Artista da saudade e do sofrer!
Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!


Leio-o, e folheio, assim, toda a minh’alma!
O livro que me deste é meu, e salma
As orações que choro e rio e canto!…


Poeta igual a mim, ai que me dera
Dizer o que tu dizes! … Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto!…


Florbela Espanca, Livro de Mágoas

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Primeiro a tua mão sobre o meu seio




Primeiro a tua mão sobre o meu seio

Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé - o meu - sobre o teu pé.

Logo o roçar urgente do joelho
e o ventre mais à frente na maré.

É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
mas o beijo é carícia, de tão leve.

O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente,
ímpeto que não ache um abandono.

Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
Somos a maré alta de quem ama

Por fim o sono calmo, que não é
Senão ternura, intimidade, enleio:
O meu pé descansando no teu pé,
A tua mão dormindo no meu seio.

Rosa Lobato Faria in Cem Poemas Portugueses no Feminino (Terramar, 2005)

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Poesia com praia / Poetry at the beach

Arno Rafael Minkkinen


"De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua."

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 18 de julho de 2012

"Sou de vidro": um poema de Lídia Jorge


 

Sou de vidro

Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
...
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro

Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido

Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita

Lídia Jorge


sexta-feira, 22 de junho de 2012

Amor e peixes / Love and fishes





Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
... É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

 Adélia Prado

terça-feira, 24 de abril de 2012

A Mulher Mais Bonita do Mundo

A Mulher Mais Bonita do Mundo


estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.

José Luís Peixoto, in A Casa, a Escuridão

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