
Cartoon de Rodrigo em Humoral da História, na edição on-line do Jornal Expresso de hoje.
Sempre gostei deles estrelados, brilhantes de gordura, com uma grossa fatia de bacon a acompanhar. E ela parecia ficar um pouco incomodada ao ver-me degluti-los com entusiasmo e até alguma precipitação (o apetite tem as suas urgências, e eu sempre fui um homem de apetites!), enquanto comia os seus cereais com baixo teor de calorias, submersos em leite magro e colmatados por uma pecita de fruta de cultura biológica.
Mariana não tinha uma postura descontraída em relação a nada. Se não fosse aquele seu olharzinho pestanudo de mulher fatal, aquele sinalzinho à Cindy Crawford no canto superior dos lábios carnudos e aquele corpo…ai aquele corpinho de pecado…Mas o que tinha de beleza tinha de contenção beata. Éramos amantes há meses mas não se podia dizer que fôssemos íntimos. É impossível a intimidade para quem a nudez é apenas mais uma forma de vestir. Quando andava nua pelo quarto mantinha a pose de quem desfila sobre uma passerelle. Não contávamos segredos, não entrelaçávamos as mãos, não trocávamos olhares de cumplicidade.
Mas o pior de tudo era a sua miopia sexual. Era uma mulher dogmática na cama, sem imaginação ou liberdade. Sempre que eu propunha uma inovação, uma maneira diferente de tocar, um exercício mais experimental e ousado, levava com uma expressão axiomática do género: “ISSO não faço! É animalesco…é pouco higiénico”. E esta era uma proposição reiterada, sentenciosa e indiscutível. Morria ali a discussão, sem espaço a contra-argumentos! E eu que sempre fui adepto do método científico no vale dos lençoís!
“Eh pá, mas porquê?”, indagava eu, desesperado com a sua sovinice sensual. “Porque não.” E, ao ouvir isto, passava-me uma nuvem vermelha pela vista e crescia em mim a vontade de fazer uma loucura…de rasgar-lhe a roupa sempre impecável…despenteá-la…violá-la…destituí-la daquela pose de diva inatingível que me impossibilitava de a amar verdadeiramente.
Uma manhã, mais uma vez apanhado na ratoeira do mecanismo frustração afectiva – compensação alimentar, fritava os meus ovos na gordura luzidia do bacon quando desceu sobre mim uma epifania de inspiração erótica. Decerto instigado pela versão cinéfila do Kamasutra, essa maravilha da 7ª arte que é Nove Semanas e Meia, resolvi oferecer-lhe o pequeno-almoço na cama.
Ainda dormia, vestida apenas pela rebeldia dos seus cabelos ruivos, a nudez sublinhada pela finura do tecido que a cobria. Levantei lentamente o lençol. Senti o desejo pulsante sublinhado pelo travo picante da profanação. E, devagarinho, como obedecendo a um ritual sagrado, espremi o ovo estrelado, escorrendo entre os meus dedos, naquele umbiguinho de sereia.
Levantou-se de um grito. Olhou para mim como se tivesse tido uma revelação e eu fosse o diabo…
E só guardo na memória aquele corpinho nú, lindo, sem vestígios de celulite, a escapulir-se qual ninfa da Ilha dos Amores, fugindo às mãos mas oferecendo-se ao olhar deste argonauta faminto, sem amor nem pequeno-almoço.
Foi este o episódio que marcou o fim da nossa relação. E ainda hoje me arrependo de não ter deixado arrefecer um bocadinho mais o ovo.
Ana Tarouca
23 Dez. 2000, reescrito em Outubro de 2008
"- Gosta de ler?
- Gosto. E você, gosta de quem lê?
- Sou bibliotecária, livros são minha paixão. Um dia ainda abro uma livraria.
(…)
- Se eu lesse muitos livros? Você me admiraria?
- Claro que sim.
- Quantos livros eu teria de ler?
- Nunca pensei nisso.
- Pois vou ler esta biblioteca inteira. Depois vou passar por todas as outras bibliotecas de São Paulo, do Brasil.. Onde tiver livro, estarei lendo...
Ele se encaminhou para a porta, voltou-se.
- Por você vou ler 1 milhão de livros. Um bilhão. E aí você vai me admirar.
Quase disse 'gostar de mim', se conteve, apenas pensou que ela veria quanto uma paixão move um homem.
- Vou ler 1 trilhão de livros, vou ler todos os livros do mundo.
Liliani fez um aceno de cabeça e pensou: tomando-se a média de 120 páginas por livro e imaginando que ele demore três minutos para ler uma página, lerá um livro a cada 360 minutos, ou seja seis horas. Seis trilhões de horas, calculando por baixo, significam 250 bilhões de dias. Mais ou menos uns 70 bilhões de anos. Acho que não vou esperar, concluiu. Estou com fome. E saiu para o almoço."
Podem ler aqui o conto na íntegra. Trata-se de Conto de Natal à Minha Maneira, ou seja, à maneira de Ignácio de Loyola Brandão. Foi publicado no Jornal O Estado de São Paulo em 22 de Dezembro de 2006.
As bibliotecárias são assim, hihi, despertam paixões avassaladoras! ;)
O Man-el partilha comigo o gosto pelas citações de Groucho Marx e ofereceu-me recentemente esta:
"I find television very educating. Every time somebody turns on the set, I go into the other room and read a book."
E bem a propósito desta frase, surge esta semana na Revista Visão, uma convergente de Ricardo Araújo Pereira:
"Confesso que, quando a SIC estreou o programa Momento da Verdade, temi o pior. Julguei tratar-se de mais um produto televisivo aviltante, o que me colocaria um problema difícil. Eu vejo pouca televisão, mas nunca perco um produto aviltante. A televisão tem uma capacidade de aviltar que não é ultrapassada por qualquer outro meio de comunicação e por isso constitui, para mim, a principal fonte de aviltamento. Se tomo conhecimento de que há produtos aviltantes nas grelhas, pego nas pipocas e vou para o sofá ser aviltado. Imaginem o meu alívio quando constatei que o Momento da Verdade é, afinal, serviço público, e o programa mais interessante da televisão portuguesa, quer do ponto de vista ético quer do ponto de vista filosófico. Como é óbvio, um produto com estas características não me interessa. Para isso, vou ler livros."
Não deixem de ler toda a crónica do RAP aqui e depois digam lá se Groucho Marx não sabia mais do que Platão?!
A propósito, no Wikcionário:
a.vil.tar
E um provérbio no Citador:
O carácter verdadeiro não se avilta por dinheiro.
E esta hem!
"Claro que se deve "ganhar a vida" de alguma maneira - mas o essencial aqui é viver. Seja o que for que fizermos, qualquer que seja a opção que escolhamos (talvez todas elas), o o quanto nos comprometamos, devemos orar para nunca confundir arte com vida: a Arte é breve, a Vida é longa. Devemos estar preparados para navegar, nomadizar, escorregar de todas as redes, nunca estabilizar, viver através de várias artes, fazer nossas vidas melhores que nossa arte, fazer da arte nosso grito no lugar de nossa desculpa".
Está no texto Vernissage, um artigo de Hakim Bey. É sobre arte. Alessandro Martins, diz que poderia ser sobre blogues. Eu digo que também pode ser sobre a escrita enquanto criação.
Já agora é bom que se diga que Hakim Bey é o pseudônimo de Peter Lamborn Wilson, (Nova Iorque, 1945), escritor, ensaísta e poeta.