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domingo, 22 de agosto de 2010

O romance de Ian McEwan: a única expiação possível para tamanha culpa é a escrita



Acabei de ler Expiação, Atonement na sua versão original, Reparação na versão brasileira. O autor é Ian McEwan. Como já não é a primeira vez que me acontece, foi o filme que me empurrou para o livro. Adorei o filme (Joe Wright, 2007). Após a leitura do romance, concluí que o filme consegue, recorrendo habilmente a flashbacks,  ser fiel ao livro. Tal não se revela fácil visto haver um jogo de perspectivas em que o mesmo acontecimento é visto essencialmente de duas maneiras diferentes: como realmente se passou e filtrado pelo olhar ingénuo e fantasioso de uma menina de 13 anos, Briony.



Em Expiação acompanhamos o emergir de uma relação latente amor-ódio entre Cecilia, a filha mais velha de uma abastada família britânica, e Robbie, jardineiro daquela propriedade e a quem foi facultada pelo patrão uma educação acima da sua esfera social.  

A vivência deste amor acaba por se revelar impossível de forma tragicamente injusta, minada pela perspectiva ingénua  e teimosa de Briony, a irmã mais nova de Cecilia, ao acusar Robbie, de um crime que ele não cometeu. Ao interpretar erradamente o que vê, Briony, inventa uma mentira que vai resultar na condenação de um homem inocente à prisão.

A eclosão da Segunda-Guerra Mundial vai dar contornos verdadeiramente trágicos a esta história de amor assim como um peso épico na culpa de Briony e nas consequências da sua irreparável mentira, de quando ainda era apenas uma criança.


A única expiação possível para tamanha culpa é a escrita, essencialmente este romance.



Sobre o livro importa ainda dizer:


O peso da injustiça e da tragédia, do amor por cumprir e da violência da guerra sente-se mais no livro, tornando-o mais triste que o filme. Há uma passagem em que Robbie caminha em direcção à casa e ao jantar em que o ponto de viragem acontecerá, sentido o gosto da liberdade e de todas as possibilidades de futuro que tem pela frente, quer em termos afectivos quer profissionais:

"Uma palavra encerrava tudo o que ele sentia e explicava por que recordaria com insistência aquele momento depois. Liberdade. Na vida e nos braços e nas pernas. (...) Agora, finalmente, com o exercício de sua vontade, sua vida adulta tivera início. Estava tecendo uma história em que ele próprio era o protagonista, e a cena inicial já causara um certo espanto em seus amigos. (...) Nunca antes tivera tanta consciência de sua juventude, nem experimentara tamanho apetite, tamanha impaciência, para que a história começasse logo". (pp. 50-51)



Umas horas depois, todas estas promessas de futuro estariam irremediavelmente perdidas... 
 

Esta menina de treze anos é a personagem mais fascinante do livro, assim como, vimos mais tarde a perceber, a narradora madura de toda a história. No último capítulo dirige-se ao leitor já como escritora assumida, nos seus 70 anos e doente.

Algumas das passagens mais notáveis vêm indiscutivelmente de Briony e dos seus devaneios precoces sobre a sua escrita:


"A maneira mais simples de impressionar Leon teria sido escrever uma história para ele, colocá-la em suas mãos e ficar olhando para ele enquanto lia. As letras do título, a capa ilustrada, as páginas encadernadas, amarradas — essa palavra por si só continha o fascínio daquela forma clara, limitada e incontrolável que ela deixara para trás ao decidir escrever uma peça. Uma história era algo direto e simples, que não permitia que nada se intrometesse entre ela e seu leitor — nenhum intermediário incompetente e cheio de ambições próprias, nenhuma pressão de tempo, nenhuma limitação de recursos. Na história era só querer, era só escrever e ter um mundo inteiro; numa peça era necessário utilizar o que estava disponível: não havia cavalos, não havia ruas, não havia mar. Não havia cortina. Agora que era tarde demais, a idéia lhe parecia óbvia: uma história era uma forma de telepatia. Por meio de símbolos traçados com tinta numa página, ela conseguia transmitir pensamentos e sentimentos da sua mente para a mente de seu leitor. Era um processo mágico, tão corriqueiro que ninguém parava para pensar e se admirar. Ler uma frase e entendê-la era a mesma coisa; era como dobrar o dedo, não havia intermediação. Não havia um hiato durante o qual os símbolos eram decifrados.

A gente via a palavra castelo e pronto, lá estava ele, visto ao longe, com bosques verdejantes..." (p. 22)



"Briony deu-se conta de que poderia escrever uma cena como aquela ocorrida junto à fonte e que poderia incluir um observador oculto, como ela própria. Imaginava-se agora correndo para seu quarto, pegando um bloco de papel pautado e sua caneta-tinteiro de baquelita marmorizada. Já via as frases simples, os símbolos telepáticos se acumulando, fluindo da ponta da pena. Poderia escrever a cena três vezes, de três pontos de vista; sua excitação era proporcionada pela possibilidade de liberdade, de livrar-se daquela luta desgraciosa entre bons e maus, heróis e vilões. Nenhum desses três era mau, nenhum era particularmente bom. Ela não precisava julgar. Não precisava haver uma moral. Bastava que mostrasse mentes separadas, tão vivas quanto a dela, debatendo-se com a idéia de que as outras mentes eram igualmente vivas. Não eram só o mal e as tramóias que tornavam as pessoas infelizes; era a confusão, eram os mal-entendidos; acima de tudo, era a incapacidade de apreender a verdade simples de que as outras pessoas são tão reais quanto nós. E somente numa história seria possível incluir essas três mentes diferentes e mostrar como elas tinham o mesmo valor. Essa era a única moral que uma história precisava ter.

Seis décadas depois, ela mostraria como, aos treze anos de idade, havia atravessado, com seus escritos, toda uma história da literatura, começando com as histórias baseadas na tradição folclórica européia, passando pelo drama com intenção moral simples, até chegar a um realismo psicológico imparcial que descobrira sozinha, numa manhã específica, durante uma onda de calor em 1935". (p. 24)


A ilusão de um final feliz.

 
Nota: A edição que li é a portuguesa, da Gradiva, no entanto as citações aqui apresentadas e a respectiva paginação são de uma edição brasileira disponível no Scribd.

domingo, 18 de julho de 2010

A minha irmã em palco



O talento de quem amamos abençoa-nos.

Chego agora de alma cheia. Depois de ver a minha irmã em cima de um palco. Já não é a primeira vez, nem sequer a segunda, mas a sensação é sempre a mesma. Transbordante de emoção e orgulho. Venho de a ver não como a pessoa que amo e reconheço como minha irmã mas como outras que me são estranhas: é a magia do teatro. Vi-a crescer como pessoa (como é a minha irmã mais nova, vejo-a literalmente crescer desde o dia em que nasceu), como mulher, como bailarina e agora como actriz. Privilégios que a vida nos dá. :)

domingo, 20 de junho de 2010

A propósito da morte de José Saramago (1922-2010)


O privilégio de um escritor consagrado é as suas palavras continuarem a ser "ouvidas" mesmo depois de falecido. Alguns arranham mesmo o chão da eternidade: Ovídeo, Aristóteles, Platão, Homero...Camões, Shakespeare...Quanto tempo durará a imortalidade de José Saramago? Terá já feito as pazes com Deus?


sábado, 12 de junho de 2010

terça-feira, 27 de abril de 2010

Queres ser fiel a ti mesmo ou pertencer à rebanhada? A segunda é mais fácil.


"Take chances if you can handle the repercussions. You want to be an individual; can you handle it? Because it’s lonesome. That means not running with the pack. The pack don’t want you when you’re an individual. Pack wants you to be the pack. The phrase “to thine own self be true”: It’s real. But it’s hard".

Whoopi Goldberg, Glamour May 2010
 
 
Não sei se será sempre uma questão de escolha: há pessoas que naturalmente se diferenciam do rebanho, na defesa da sua coerência, com todas as dificuldades inerentes, e há aqueles que só sabem seguir, agir por orientação e imitação. A estes é estranho o acto de questionar, pôr em causa, mudar. São as personagens planas de um romance barato.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A razão porque às vezes me sinto fora de contexto no mundo...

...deslocada, recatada, estranha, como se não pertencesse a um grande livro quotidiano, como se este livro fosse escrito numa língua desconhecida para mim mas não para a maioria dos que me rodeiam..."out of context"! Será esta?

"The majority of well adapted individuals have lost their own self at an early age and replaced it completely by a social self offered to them by society. They have no neurotic conflicts because they themselves… have disappeared".



Erich Fromm

sábado, 27 de fevereiro de 2010

A ciência pode ser tão poética! Ou a questão da empatia.

Com o discurso da  escritora J.K. Rowlings que publiquei AQUI apreendi um sentido mais profundo para a imaginação que se mistura com a empatia.

Agora, a apresentação que se segue, "Os Neurónios que mudaram a civilização",apresenta-me a validação científica da nossa capacidade biológica, neurológica, inata para a empatia.

Não é só pelo exercício voluntário da imaginação que estamos ligados ao Outro, trata-se de uma condição física, cerebral, programada. Fascinante. A ciência pode ser tão poética!


Somos realmente um Ser Colectivo!






"Neuroscientist Vilayanur Ramachandran outlines the fascinating functions of mirror neurons. Only recently discovered, these neurons allow us to learn complex social behaviors, some of which formed the foundations of human civilization as we know it".



Literatura, Religião, Ciência...num ponto convergente.

Obrigada NN pelos vídeos e pela troca de ideias. :))



Conceito de empatia:

O estudo sobre os processos empáticos é relativamente recente, sendo que as primeiras pesquisas científicas conhecidas sobre empatia foram feitas a partir da segunda metade do século XX, embora esse conceito já existisse pelo menos desde o início do século XX. A empatia é, segundo Hoffman (1981), a resposta afetiva vicária a outras pessoas, ou seja, uma resposta afetiva apropriada à situação de outra pessoa, e não à própria situação. O termo foi usado pela primeira vez no início do século XX, pelo filósofo alemão Theodor Lipps (1851-1914), "para indicar a relação entre o artista e o espectador que projeta a si mesmo na obra de arte." Na psicologia e nas neurociências contemporâneas a empatia é uma "espécie de inteligência emocional" e pode ser dividida em dois tipos: a cognitiva - relacionada à capacidade de compreender a perspectiva psicológica das outras pessoas; e a afetiva - relacionada à habilidade de experimentar reações emocionais por meio da observação da experiência alheia.

O estado de empatia, ou de entendimento empático, consiste em perceber corretamente o marco de referência interno do outro com os significados e componentes emocionais que contém, como se fosse a outra pessoa, porém sem perder nunca essa condição de “como se”. A empatia implica, por exemplo, sentir a dor ou o prazer do outro como ele o sente e perceber suas causas como ele a percebe, porém sem perder nunca de vista que se trata da dor ou do prazer do outro.

Fonte: Wikipédia



Sejam empáticos comigo e tenham paciência para com as minhas intríncadas reflexões. :) 

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

ON, ON, ON...never OFF life, ok?!



Esta não é uma resolução relevante para o novo ano: eu continuo on-line e on-life! :)  

Não são modos de vida incompatíveis. Nem a internet é uma fuga ou uma alternativa  viável à vida real! Trata-se de uma ferramenta espectacular de trabalho e simultaneamente de lazer (se bem que eu tenho tanta sorte em gostar do que faço que, por vezes, as duas vertentes se misturam e confundem).

Vemo-nos por aí, on...

Evaporação literária ou simplesmente um livro esquecido sobre a cama?




A cama vazia. Não, eu estou lá! É este o livro que leio agora! Às vezes isto acontece-me, dissolvo-me na leitura, entro pelo livro adentro, entrelaço-me na história e o enredo em mim, até que algum dos meus sentidos me puxa para a realidade, contrariada ou contente. Ah, depois volto. A dissolução é recorrente... :)


A pintura é de Denis Ichitovkin.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Onde, quando e como surgem as ideias, as imagens, as palavras...

Inês Pedrosa, escritora, confessa onde, quando e como lhe surgem as ideias e os livros se concretizam:


"Escrever à noite é mais inspirador: os telemóveis não tocam, há silêncio".Diz que não tem um local específico para escrever, mas as condições em que o faz determinam a fluidez do texto. "É importante não ser interrompida. Nem ter o tempo contado, se tiver só duas horas para escrever não me sai uma linha", explica a escritora Inês Pedrosa. Por outro lado, a hora do dia também conta no momento de se sentar em frente ao computador. "A escrita flui mais à noite, os telemóveis não tocam." Foi o que aconteceu recentemente, quando escrevia a sua última ficção, "Eternidade e Desejo", numa residência artística em Nova Iorque. "Fazíamos apenas uma refeição conjunta diária. De resto, cada um tinha o seu horário." A escritora fez o seu: durante a noite escrevia, dormia de manhã e à tarde revia o que tinha escrito na noite passada. Resultado: num mês escreveu mais de 100 páginas. "Tornou-se muito mais fácil mergulhar no universo do livro." A inspiração é diversa e pode chegar de variadíssimas formas, seja uma história que lhe contam, ou situações reais. Mas deixa um aviso: um escritor não pode escrever apenas quando está inspirado. "O segredo é persistência de maratonista."






Curiosamente, durante muitos anos fui mais produtiva durante a noite, precisamente por causa da calma e do silêncio, da sensação de que a energia do mundo pousou adormecida por algumas horas. Hoje são as manhãs que me animam a capacidade de concretizar. Ter tempo  e saber que estamos a salvo de interrupções é muito importante para a descontracção e a concentração necessárias à criação. Há alturas em que não consigo dormir porque é quando entro no limiar do sono que as ideias surgem e me abanam. Salto para o papel porque se não escrever logo esqueço. A tomar banho também me acontece. :) Ando sempre com um caderno na mala não vá a inspiração surpreender-me a atravessar a rua, a olhar pela janela do autocarro ou ao volante. E acredito na "persistência de maratonista", na expressão "10% inspiração, 90% transpiração" ou ainda melhor, "quando a inspiração vier é bom que te apanhe a trabalhar".

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A escrita e a ténue fronteira entre a autobiografia e a ficção.

Fascina-me sempre a forma como um escritor se expõe, se denuncia, numa ténue fronteira entre a autobiografia e a ficção.


Esta é uma reflexão minha depois da leitura da última crónica de António Lobo Antunes, esplêndida como sempre. Nela o escritor revolta-se contra a velhice, lembra de como diziam que era bonito, o surpreendente assédio das raparigas, a vez em que foi a uma casa de prostitutas e fugiu pelas escadas abaixo, as doenças de família, os suicídios, o remorso pelos momentos em que se afasta das palavras escritas. Para ler aqui.

domingo, 30 de agosto de 2009

4 citações e os poemas que troco por um beijo

“A generosidade da poesia está na liberdade que as palavras conquistam, para dizerem apenas o que nos apetece ouvir.”
 Isabel Stilwell
 
“A poesia é a matemática dos sentimentos. Ou seja, as emoções expressam-se de um modo muito preciso. Não podemos permitir-nos colocar uma vírgula fora do lugar e as palavras têm de estar no sítio certo.”
Tahar Ben Jelloun
 
“A poesia é outra forma de apreensão do real. Foi Novalis que disse que a poesia é o real absoluto. O que eu acho é que, ficcionando, chega-se mais perto da realidade, da essência das coisas.”
Manuel Alegre
 
"Troco um poema por um beijo. Nem que seja um poema extraordinário. A vida é mais importante que a escrita"
                                                                                                                José Luís Peixoto

Eu também troco qualquer poema, por mais extraordinário que seja, por um beijo de quem amo, mesmo que se trate de um beijo de todos os dias. Não há matemática poética, por mais exacta que seja, que supere a intangível beleza de certos momentos vividos. Quando mais intensos mais intraduzíveis são, mesmo que se trate da ciência das palavras que alcançam mais longe e tocam mais fundo...mesmo assim...
 
Se o meu amor me exigisse um poema passaria as noites a escrever pelo beijo de cada manhã!:)


quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Puxando o fio da narrativa...

...tecendo um enredo...


...juntando as pontas soltas...

...com cuidado, subtileza, 
não se vá desprender o sentido, 
perder-se o remate, 
desatar a inspiração...


É preciso dar um nó apertado no "FIM".





Pinturas em acrílico de Erin Cone.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

"Os gatos são palavras com pêlo."



«Os gatos são palavras com pêlo. Os gatos, como as palavras, rondam à volta dos humanos sem nunca se deixarem domesticar. É tão difícil meter um gato num cesto quando temos um comboio para apanhar do que ir à nossa memória caçar a palavra exacta e convencê-la a tomar o seu lugar na página em branco. Palavras e gatos pertencem ambos à raça dos inefáveis.»
[in Dois Verões, de Erik Orsenna, trad. de Luís Ruivo Domingos, Teorema, 2009]


"Inefável, que significa o que não pode ser expresso verbalmente, é um termo utilizado para identificar algo de origem divina ou transcendente e com atributos de beleza e perfeição tão superiores aos níveis terrenos que não pode ser expresso em palavras humanas".
Fonte: Wikipédia

Este blogue não é só do cão. Aqui também há gato! E muitas, muitas palavras... na vã e patética tentativa da aproximação ao inefável...e na admiração dos que menos patéticos do que eu, deste mais se aproximam. Como os gatos.

domingo, 15 de março de 2009

O meu beijo para Rodin

Este é "uma espécie de" poema que eu escrevi em 2001, na altura divulgado no site Educare e que mais tarde publiquei no meu blogue O Lobo Leitor. É um bocadinho apimentado, há quem diga que é erótico...o meu único intuito foi transmitir aquilo que esta escultura de Rodin inspirava em mim.

As esculturas de Rodin deslumbram-me e emocionam-me. Em Madrid, em 1998, tive oportunidade de ver ao vivo algumas das suas obras-primas, fiquei completamente encantada, rodeando-as, olhando de todos os ângulos, cercando a sua completa perfeição...


Aqui deixo o meu O Beijo, de Rodin:






Da metamorfose do rochedo
Monstro de terra e de mar
Áspero, sólido, horrendo
Liberta-se aos poucos
Uma forma de arte... e de amar

Os músculos apenas se descobrem
Na denúncia da pulsação esquecida
Das mil energias que percorrem
A pedra viva.

Na lisura da pedra suada murmuram discretas veias
De dois corpos em concha
Onde
o tempo construiu suas imortais teias

De brilho e de cotão

Pelo torso tímido ela se enleia como Hera
Que o quer seu
E o seu gesto de jovem primavera
Guarda em si o fogo da paixão

Na brisa subtil desta ternura
Esquecida de si mesma ela se dá
E da rocha de uma teimosia dura
Os pés voam e ganham o ar.

O seu seio erguido se alonga no abraço
E roça dele o peito pujante e vigoroso
E este toque sentido
Desperta um desejo ardente e ansioso.

O amante, mais contido no seu movimento
Pousa a sua mão grande e viril
Na carne rija e sem tempo
Da sua ninfa de cinzel e vento.

E na coxa que a luz revela... firmeza
E a sombra arredonda,
Há a secreta beleza
De um segredo profundo... no escuro.

Os olhos fechados no pudor do sentimento
O tremor quente dos lábios nas órbitas nocturnas.
A urgência do desfloramento
Na avidez das ternas garras, tenra luz.

Numa penumbra sem rostos
Dois corpos, um só ensejo
Um homem, um mulher
Um só gesto, um eterno beijo.

Ana Tarouca, 2001


quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Aqui fica a minha gratidão por tudo e por todos os que me inspiram

Fonte: Bruaá Editora

Condeno o plágio, o roubo de ideias mas acredito na inspiração partindo da criação dos outros. Esta é inevitável. Considero a transcrição, a cópia, o vulgarizado copy/paste das palavras, ideias, trabalho dos outros elogiosa, uma forma de honrar o objecto que nos inspira e o seu criador mas sempre, sempre citando a fonte, o autor.
Contudo, nada há de errado em partir da arte de terceiros e recriá-la, torná-la nossa. Aliás, penso que não há outra forma de criação. Mas isso implica já o empenho da nossa própria imaginação, experiência e trabalho.
Em qualquer dos casos, fica um sentimento de gratidão por tudo e por todos os que nos inspiram, nem que seja pelo seu modo de vida. Nem que seja simplesmente por existirem e pelo amor e afecto que nos suscitam. Pela forma como enchem a nossa vida. Obrigada. :)

sábado, 18 de outubro de 2008

Ovos quentes


Sempre gostei deles estrelados, brilhantes de gordura, com uma grossa fatia de bacon a acompanhar. E ela parecia ficar um pouco incomodada ao ver-me degluti-los com entusiasmo e até alguma precipitação (o apetite tem as suas urgências, e eu sempre fui um homem de apetites!), enquanto comia os seus cereais com baixo teor de calorias, submersos em leite magro e colmatados por uma pecita de fruta de cultura biológica.

Mariana não tinha uma postura descontraída em relação a nada. Se não fosse aquele seu olharzinho pestanudo de mulher fatal, aquele sinalzinho à Cindy Crawford no canto superior dos lábios carnudos e aquele corpo…ai aquele corpinho de pecado…Mas o que tinha de beleza tinha de contenção beata. Éramos amantes há meses mas não se podia dizer que fôssemos íntimos. É impossível a intimidade para quem a nudez é apenas mais uma forma de vestir. Quando andava nua pelo quarto mantinha a pose de quem desfila sobre uma passerelle. Não contávamos segredos, não entrelaçávamos as mãos, não trocávamos olhares de cumplicidade.

Mas o pior de tudo era a sua miopia sexual. Era uma mulher dogmática na cama, sem imaginação ou liberdade. Sempre que eu propunha uma inovação, uma maneira diferente de tocar, um exercício mais experimental e ousado, levava com uma expressão axiomática do género: “ISSO não faço! É animalesco…é pouco higiénico”. E esta era uma proposição reiterada, sentenciosa e indiscutível. Morria ali a discussão, sem espaço a contra-argumentos! E eu que sempre fui adepto do método científico no vale dos lençoís!

“Eh pá, mas porquê?”, indagava eu, desesperado com a sua sovinice sensual. “Porque não.” E, ao ouvir isto, passava-me uma nuvem vermelha pela vista e crescia em mim a vontade de fazer uma loucura…de rasgar-lhe a roupa sempre impecável…despenteá-la…violá-la…destituí-la daquela pose de diva inatingível que me impossibilitava de a amar verdadeiramente.

Uma manhã, mais uma vez apanhado na ratoeira do mecanismo frustração afectiva – compensação alimentar, fritava os meus ovos na gordura luzidia do bacon quando desceu sobre mim uma epifania de inspiração erótica. Decerto instigado pela versão cinéfila do Kamasutra, essa maravilha da 7ª arte que é Nove Semanas e Meia, resolvi oferecer-lhe o pequeno-almoço na cama.

Ainda dormia, vestida apenas pela rebeldia dos seus cabelos ruivos, a nudez sublinhada pela finura do tecido que a cobria. Levantei lentamente o lençol. Senti o desejo pulsante sublinhado pelo travo picante da profanação. E, devagarinho, como obedecendo a um ritual sagrado, espremi o ovo estrelado, escorrendo entre os meus dedos, naquele umbiguinho de sereia.

Levantou-se de um grito. Olhou para mim como se tivesse tido uma revelação e eu fosse o diabo…

E só guardo na memória aquele corpinho nú, lindo, sem vestígios de celulite, a escapulir-se qual ninfa da Ilha dos Amores, fugindo às mãos mas oferecendo-se ao olhar deste argonauta faminto, sem amor nem pequeno-almoço.

Foi este o episódio que marcou o fim da nossa relação. E ainda hoje me arrependo de não ter deixado arrefecer um bocadinho mais o ovo.

Ana Tarouca

23 Dez. 2000, reescrito em Outubro de 2008

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