sábado, 30 de abril de 2011

O pó dos livros: um poema



Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas
que sussurram)
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.

Duplo Império, Pedro Mexia

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Namora uma rapariga que lê




Eu já estou comprometida mas há outras... :)


"Namora uma rapariga que lê. Namora uma rapariga que gaste o dinheiro dela em livros, em vez de roupas. Ela tem problemas de arrumação porque tem demasiados livros. Namora uma rapariga que tenha uma lista de livros que quer ler, que tenha um cartão da biblioteca desde os doze anos.

Encontra uma rapariga que lê. Vais saber que é ela, porque anda sempre com um livro por ler dentro da mala. É aquela que percorre amorosamente as estantes da livraria, aquela que dá um grito imperceptível ao encontrar o livro que queria. Vês aquela miúda com ar estranho, cheirando as páginas de um livro velho, numa loja de livros em segunda mão? É a leitora. Nunca resistem a cheirar as páginas, especialmente quando ficam amarelas.

Ela é a rapariga que lê enquanto espera no café ao fundo da rua. Se espreitares a chávena, vês que a espuma do leite ainda paira por cima, porque ela já está absorta. Perdida num mundo feito pelo autor. Senta-te. Ela pode ver-te de relance, porque a maior parte das raparigas que lêem não gostam de ser interrompidas. Pergunta-lhe se está a gostar do livro.

Oferece-lhe outra chávena de café com leite.

Diz-lhe o que realmente pensas do Murakami. Descobre se ela foi além do primeiro capítulo da Irmandade. Entende que, se ela disser ter percebido o Ulisses de James Joyce, é só para soar inteligente. Pergunta-lhe se gosta da Alice ou se gostaria de ser a Alice.

É fácil namorar com uma rapariga que lê. Oferece-lhe livros no dia de anos, no Natal e em datas de aniversários. Oferece-lhe palavras como presente, em poemas, em canções. Oferece-lhe Neruda, Pound, Sexton, cummings. Deixa-a saber que tu percebes que as palavras são amor. Percebe que ela sabe a diferença entre os livros e a realidade – mas, caramba, ela vai tentar fazer com que a vida se pareça um pouco com o seu livro favorito. Se ela conseguir, a culpa não será tua.

Ela tem de arriscar, de alguma maneira.

Mente-lhe. Se ela compreender a sintaxe, vai perceber a tua necessidade de mentir. Atrás das palavras existem outras coisas: motivação, valor, nuance, diálogo. Nunca será o fim do mundo.

Desilude-a. Porque uma rapariga que lê compreende que falhar conduz sempre ao clímax. Porque essas raparigas sabem que todas as coisas chegam ao fim. Que podes sempre escrever uma sequela. Que podes começar outra vez e outra vez e continuar a ser o herói. Que na vida é suposto existir um vilão ou dois.

Porquê assustares-te com tudo o que não és? As raparigas que lêem sabem que as pessoas, tal como as personagens, evoluem. Excepto na saga Crepúsculo.

Se encontrares uma rapariga que leia, mantém-na perto de ti. Quando a vires acordada às duas da manhã, a chorar e a apertar um livro contra o peito, faz-lhe uma chávena de chá e abraça-a. Podes perdê-la por um par de horas, mas ela volta para ti. Falará como se as personagens do livro fossem reais, porque são mesmo, durante algum tempo.

Vais declarar-te num balão de ar quente. Ou durante um concerto de rock. Ou, casualmente, na próxima vez que ela estiver doente. Pelo Skype.

Vais sorrir tanto que te perguntarás por que é que o teu coração ainda não explodiu e espalhou sangue por todo o peito. Juntos, vão escrever a história das vossas vidas, terão crianças com nomes estranhos e gostos ainda mais estranhos. Ela vai apresentar os vossos filhos ao Gato do Chapéu e a Aslam, talvez no mesmo dia. Vão atravessar juntos os invernos da vossa velhice e ela recitará Keats, num sussurro, enquanto tu sacodes a neve das tuas botas.

Namora uma rapariga que lê, porque tu mereces. Mereces uma rapariga que te pode dar a vida mais colorida que consegues imaginar. Se só lhe podes oferecer monotonia, horas requentadas e propostas mal cozinhadas, estás melhor sozinho. Mas se queres o mundo e os mundos que estão para além do mundo, então, namora uma rapariga que lê.

Ou, melhor ainda, namora uma rapariga que escreve."


(Texto de Rosemary Urquico, encontrado no blogue de Cynthia Grow. Tradução “informal” de Carla Maia de Almeida para celebrar o Dia Mundial do Livro, 23 de Abril.)
 

terça-feira, 26 de abril de 2011

"O homem que lê"




O homem que lê

Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde… em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.



E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa.


O Livro das Imagens, Rainer Maria Rilke

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Dez curtas citações de Alain de Botton



Dez curtas citações de Alain de Botton:



  1. People only get really interesting when they start to rattle the bars of their cages.
  2. When one is finally feeling lucid, clear-eyed and rational, people always ask if one's drunk.
  3. Weakness is only charming in the strong.
  4. Those who go on to be proper writers are those who can forgive themselves the horrors of the first draft.
  5. You can only determine people's levels of happiness by investigating their ambitions, not their achievements.
  6. Great conversations are like beautiful squares in foreign cities one finds at night and then don't know how to get back to in daytime.
  7. Work only starts when the fear of doing nothing finally exceeds the fear of doing something badly.
  8. Nagging: when we are too exhausted to be able to convince and charm others into recognising the legitimacy of our needs.
  9. The most attractive people are the desperate but stoic-comedic.
  10.  Success is a reduction in the number of people capable of torturing you with envy.


quarta-feira, 20 de abril de 2011

O primeiro contacto técnico do FMI


"Hotel Tivoli? Daqui, do aeroporto, é um tiro... Então o amigo é o camone que vem mandar nisto? A gente bem precisa. Uma cambada de gatunos, sabe? E não é só estes que caíram agora. É tudo igual, querem é tacho. Tá a ver o que é? Tacho, pilim, dólares. Ainda bem que vossemecê vem cá dizer alto e pára o baile... O nome da ponte? Vasco da Gama. A gente chega ao outro lado, vira à direita, outra ponte, e estamos no hotel. Mas, como eu tava a dizer, isto precisa é de um gajo com pulso. Já tivemos um FMI, sabe? Chamava-se Salazar. Nessa altura não era esta pouca-vergonha, todos a mamar. E havia respeito... Ouvi na rádio que amanhã o amigo já está no Ministério a bombar. Se chega cedo, arrisca-se a não encontrar ninguém. É uma corja que não quer fazer nenhum. Se fosse comigo era tudo prà rua. Gente nova é qu'a gente precisa. O meu filho, por exemplo, não é por ser meu filho, mas ele andou em Relações Internacionais e eu gostava de o encaixar. A si dava-lhe um jeitaço, ele sabe inglês e tudo, passa os dias a ver filmes. A minha mais velha também precisa de emprego, tirou Psicologia, mas vou ser sincero consigo: em Junho ela tem as férias marcadas em Punta Cana, com o namorado. Se me deixar o contacto depois ela fala consigo, ai fala, fala, que sou eu que lhe pago as prestações do carro... Bom, cá estamos. Um tirinho, como lhe disse. O quê, factura? Oh diabo, esgotaram-se-me há bocadinho".

De Ferreira Fernandes para o DN em 13 de Abril de 2011 

Muuuito bom!!!

Literatura em frascos

Um livro enfrascado...

...e um frasco encadernado.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

"Blogs e redes sociais são aliados dos escritores. Porém…"


Na revista e muito ampliada área de livros do site do jornal inglês “The Guardian”, a escritora de romances históricos Sara Sheridan passa uma reprimenda severa (em inglês, acesso gratuito) em todos os colegas que resistem a ter uma presença ativa em blogs e redes sociais. “Me entristece ver esses escritores – comunicadores profissionais – ficarem distantes de um meio que clama por suas habilidades e que é, comprovadamente, a melhor forma de comunicação com os leitores”, escreve ela.

Sheridan tem uma dose de razão, claro, mas acredito que os recalcitrantes também tenham. Deixando de lado fatores prováveis como ranzinzice e acomodação, é razoável supor que grande parte deles sinta medo de, caindo feito Alice nessa toca de coelho, para usar uma imagem de Margaret Atwood, acabar sem tempo ou cabeça para escrever algo além de posts e tweets.

Escritores talvez sejam enquadráveis, tecnicamente, na categoria de comunicadores, e sem dúvida sempre houve os que se notabilizaram mais pelo talento promocional do que pela qualidade do texto. Isso não muda o fato de que escrever requer uma medida de recolhimento, de silêncio mental, sem a qual é impossível distinguir o que é a própria voz e o que é a gritaria do mundo.

Quem não escreve talvez ache que isso é uma bobagem romântica, um resquício da velha torre de marfim. Com a razoável experiência de quem escrevinha diariamente em blogs, para não mencionar o Twitter e o Facebook, garanto que não é. Acredito que a maioria dos escritores, mesmo sem chegar a tais extremos, compreenda a motivação de Jean Cocteau, que certa vez declarou: “Não passo os olhos num jornal há vinte anos. Se introduzem um no aposento, saio correndo. Isso não é porque eu seja indiferente, mas porque não é possível seguir todos os caminhos”.

Vinda de um sujeito que seguiu uma penca de caminhos – foi poeta, dramaturgo, romancista, cineasta, desenhista e empresário de boxe – a frase de Cocteau merece reflexão. Hoje, seguir todos os caminhos é considerado não só possível, mas indispensável. E o pior é que talvez seja mesmo. Escreva-se com um barulho desses.

Texto de Sérgio Rodrigues para a revista Veja publicado em 15 de Abril de 2011. (O destaque a negrito é meu).










domingo, 17 de abril de 2011

sábado, 16 de abril de 2011

António Lobo Antunes e a angústia de não conseguir concluir o que não tem fim

Mais uma crónica de António Lobo Antunes, "Deste profundo abismo, senhor", sobre a angústia da morte lhe roubar a possibilidade de concluir o que não tem fim:




Os livros que escrevi trazem o meu nome mas tenho dificuldade em encontrar os seus autores. Só aquele que estou a escrever é feito por mim, os restantes parece-me sempre terem sido outros homens que os compuseram. Posso reconhecer-me no que sou hoje em algumas expressões, alguns desenhos de frase, alguns parágrafos talvez, gosto deles mas afiguram-se-me passos já dados, e que não desejo repetir, na direção do meu trabalho de agora, que, de certo modo, os engloba a todos. Julgo que compõem um único texto, ou que são afluentes de um único texto ainda não completo, e que, por mil anos que viva, ficará irremediavelmente truncado. Queria deixar uma catedral de palavras e dou-me conta que a catedral não tem fim. Queria arredondar o edifício, fechá-lo, e dou-me conta, desolado, da impossibilidade desse fecho, dada a inevitável limitação da vida. Não morrerei satisfeito, morrerei com a dor de não ter tido tempo. Construirei uma obra mais duradoira que o bronze, afirmava Horácio: isso julgo que consigo. Ou Ovídio: hei-de sobreviver ao tempo, ao ferro e ao fogo: isso acho que também consigo. Porém desejava mais do que isso: uma música sem fim, uma sinfonia total. Decerto o que digo é a frustração de todo o artista e o inevitável destino da condição humana. Goethe consolava-se declarando ser o facto de não chegar ao termo a nossa única grandeza. E não conheço, em tantos autores que li, um só para quem este problema não constitua o drama da sua existência. Não se alcança a praia por mais que se nade, não há fita de chegada para esta maratona angustiosa e exaltante. Quando a doença me filou pelo pescoço, essa ansiedade envenenou-me as horas. E, quando a mão me soltou, a marca dos seus dedos imprimiu-se-me na pele. Um dia, o conjunto de átomos que me compõem desintegrar-se-á sem remédio, e eu a meio da página de que não redigirei a última linha. Tenho o maior respeito pelos criadores visto que acabam sempre por perder e não mereciam perder. E tenho pena de mim porque triunfarei na derrota: um tiro bem acertado deitar-me-á ao chão a meio do voo, e serei uma perdiz esfarrapada numa moita, que um cachorro abocanhará para a entregar ao dono, o mesmo dono que traz, pendurados do cinto, aqueles que me precederam e enganchará no mesmo cinto os que vierem depois, com idêntica indiferença. Lembro-me das terríveis anotações de Mozart nas margens do seu Requiem, não tenho tempo, não tenho tempo, idênticas às de Gallois, que levou toda a noite a escrever antes do duelo que, de manhã, o matou, tentando condensar em poucos momentos as assombrosas descobertas dos seus dezanove anos de vida. É isto justo? E a resposta vem sinistra: é. Quem escolhe, ou foi escolhido, para este tipo de destino, finda, inevitavelmente, assim. É muito rara a correspondência de pintores, ou escritores, ou compositores em que a tragédia de que falo não esteja constantemente presente, como uma chaga viva. Piedade para nós que trabalhamos nas fronteiras do ilimitado e do futuro, suplicou Apollinaire e, de facto, somos dignos de piedade. Há uns verões, num mosteiro da Roménia, o bispo cantou, com os padres e os seminaristas, uma oração pelas almas eternas dos escritores falecidos. Era uma igreja belíssima, no alto de uma encosta batida pelo vento e pelos grandes bandos de corvos chegados da Ucrânia, cujos campos de trigo se viam muito ao longe, e o canto, de dezenas e dezenas de vozes, alargava-se pelas nogueiras à volta da igreja, profundo, omovente, cheio, em simultâneo, de tristeza e de esperança, enquanto eu pensava em Gogol, o grande génio da Ucrânia, que nos retratos se assemelhava a um corvo, botando no fogo, a soluçar, toda a segunda parte das suas extraordinárias "Almas Mortas" e, em seguida, deitando-se na cama, recusando comer, até à agonia poucos dias depois: a literatura também tem os seus mártires, e nunca esquecerei a comoção que senti nessa igreja e a certeza que Gogol voava também, com os restantes corvos, em torno da colina, sobre as nogueiras em flor. Apollinaire, ainda: abram-me esta porta à qual bato a chorar, num verso que poderia ter sido composto por qualquer criador e que está sempre presente em mim diante de todas as obras de Arte. Abram-me esta porta à qual bato a chorar, é o que oiço, desde os poemas babilónicos, de há doze mil anos, até à mínima palavra de hoje. E quando Maiakovski explicou


(desculpem tanta referência)


comigo a Anatomia enlouqueceu: sou todo coração, estava a falar por nós. Conheci homens políticos importantes, desportistas excepcionais, criaturas de extrema bondade, santos anónimos de alminhas puras mas jamais me emocionei tanto como perante os criadores, não pela sua capacidade de nos oferecerem a beleza na palma da mão estendida, juntamente com a dignificação do Homem, mas pelo enorme padecimento inerente a esta capacidade, e a certeza pavorosa do seu trabalho estar destinado a ficar incompleto. Vem-me à cabeça Tolstoi moribundo, numa estação de caminho de ferro, percorrendo o cobertor com os dedos no gesto de escrever. É dessa maneira que gostaria de me ir embora: a escrever, com os dedos incertos, numa dobra de lençol, na tentativa falhada de completar o meu De Profundis necessariamente fragmentário. Oxalá, numa igreja da Roménia, cercada de corvos e nogueiras, um único seminarista, porque um único seminarista me chega, reze cantando pela alma eterna de mais um pobre escritor falecido.

 
Fonte: Revista Visão, edição de 14 de Abril de 2011

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